Moramos no bairro Guabirotuba entre 1974 e 1980, na Rua Leonardo da Vinci, numa casa de madeira de 6m por 12 m (4) , construída por meu pai.
A Rua Leonardo da Vinci inicia na Avenida Salgado Filho, sobe até a Rua Capitão João Ribas de Oliveira e desce num barranco até o charco (5) na baixada do Rio Belém, sobre o qual havia uma ponte pênsil, apenas para pedestres (6), para chegar à Vila Hauer.
Entre 1975 e 1978 estudei da 1ª até a 4ª série, na escola Professor Elysio Vianna (3), ao lado do antigo Matadouro (2), para onde a carrocinha levava os cachorros recolhidos na rua, cujos latidos nós escutávamos da escola. Diziam que eram mortos para fazer sabão.
De casa até a escola fazia uma caminhada de cinco quadras (cerca de 600 metros) pela Rua Capitão João Ribas de Oliveira, paralela à Avenida Salgado Filho, na época uma rua de saibro, sem pavimentação definitiva. Na esquina da primeira quadra havia um campinho (um terreno vazio) (7) onde eu e minhas irmãs brincávamos com os vizinhos. Adiante, num lado havia pinheiros (que estão lá até hoje) e do outro, uma madeireira (8) com a frente voltada para a Avenida Salgado Filho. Ali perto começaram a construir um condomínio (9), com casas de alvenarias, também com acesso pela Avenida Salgado Filho, que demoraram a ser concluídas. Lembro-me de, voltando da escola, ter entrado para ver as casas em construção, quando as obras estavam paralisadas, e de tê-las achadas muito pequenas.
A maioria das casas no caminho era de madeira e pequenas. E nem todas as ruas transversais chegavam até a Av. Salgado Filho: uma delas acabava numa casa cuja fachada era decorada com uma árvore em relevo na alvenaria.
Mais à frente havia uma venda (10) na esquina, onde comprávamos doces, e um pasto com animais (11), talvez até um touro, pois um coleguinha uma vez comentou que ele sairia correndo atrás de quem estivesse vestindo vermelho...
A rua ao lado da escola (Rua Oliveira) era dividida ao meio por uma aleia de plátanos. Nessa rua morava a diretora da escola (dona Adelmê de Oliveira). Minhas professoras da 1ª e 3ª série moravam no bairro. A da 4ª série morava no centro e vinha de ônibus.
As crianças iam sozinhas para a escola, mas só podíamos andar por essa rua interna, onde praticamente não havia circulação de automóveis. Em 1977 ou 1978, a Av. Salgado Filho foi asfaltada e, feitas calçadas com lajotas de concreto. Para isso, a circulação de veículos foi interrompida por um bom tempo, então podíamos ir e vir por ela durante as obras.
Os colegas de classe moravam pelo bairro, em casas ao longo do caminho e alguns, no conjunto habitacional (12) do outro lado da Avenida Salgado Filho. Era um conjunto de casas de alvenaria com telhados de duas águas, todas parecidas, mas com três tamanhos diferentes. A casa de um colega devia ser do tamanho pequeno, porque a geladeira não cabia na cozinha e ficava no quarto onde ele dormia com o irmão. Era comum ampliarem as casas. Amigos dos meus pais fizeram uma cozinha grande nos fundos do terreno. As ruas tinham nomes referentes ao ciclo do tropeirismo: Rua da Erva-Mate, da Fazenda, do Fogo e do Garimpo eram fáceis de compreender, mas ninguém sabia o que era Rua da Invernada.
Na 2ª ou 3ª série, estudávamos o bairro e as professoras ensinavam sobre o Horto Municipal (1), o Matadouro (2), a Praça Abílio de Abreu (14), a Igreja Imaculada Conceição (15), a Refrigeração Paraná (16), a Avenida Salgado Filho e a Rua Alcides Vieira Arco Verde. Com os olhos de hoje, tenho a impressão de que tudo que era importante estava do outro lado da Avenida Salgado Filho, pois no lado onde morávamos havia um morro que depois descia para a baixada do Rio Belém, num terreno encharcado, e as ruas não continuavam para o outro lado do rio, onde funcionava a empresa Placas Paraná (Modulados Guelman), cujos apitos davam referência do horário da tarde. Creio que na época ainda não fora aberta a Rua Canal Belém margeando o rio.
De cada lado da Avenida Salgado Filho as ruas transversais não se comunicavam. Para chegar ao conjunto do outro lado era preciso desviar uma quadra (pois as ruas não eram alinhadas) e cruzar um córrego onde havia girinos, que uma vez recolhemos numa tigela, mas não duraram tanto para verificarmos todos os estágios de transformação dos anfíbios, ou não tivemos paciência suficiente... ali, também havia uma madeireira ou fábrica de móveis, onde se conseguia sobras de madeira para brincar.
Com tantas casas de madeira houve uma vez um incêndio na casa de uma colega de classe (Margarete) cuja mãe era servente na escola. Pediram doações para ajudá-los, pois tinham perdido tudo, e me lembro de tê-la visto chorando na escola, usando um casaco de tricô listrado que fora da minha irmã. Foi bem triste.
Eram comuns as casas com poços de água nos quintais. Todos tinham cachorros, alimentados com sobras de comida e polenta, presos na corrente e às vezes soltos no quintal. Ninguém comprava ração industrializada nem levava os cachorros para passear... mas, havia vacinação contra raiva em agosto. Todos também criavam galinhas e um vizinho tinha um faisão num viveiro. Havia macieiras e pereiras. Couve, alface e cheiro-verde eram plantados nos quintais, que necessitavam ser periodicamente carpidos (morar em apartamento parecia ser uma ótima ideia, só para não ter que capinar o quintal...). O lixo orgânico era dado às galinhas ou enterrado para adubar a terra, e o restante era queimado. Que eu me lembre, não havia coleta de lixo.
Em 1980 houve obras na Rua Leonardo da Vinci para acertar o “greide” da rua e refazer o revestimento de saibro, o que durou muito tempo, porque as obras eram interrompidas quando chovia e as pessoas tinham que andar mais de uma quadra sobre o barro que aderia aos sapatos. Minha mãe trabalhava no centro. Deixava um par de sapatos limpos na casa da vizinha da esquina, caminhava em botas de borracha sobre a rua em obras, trocava de calçado e seguia até o ponto de ônibus. Jardim Centauro, Vila São Paulo, Uberaba e Monte Castelo eram as linhas que passavam pelo bairro. Originalmente os pontos ficavam na Praça Carlos Gomes, na face da Rua Monsenhor Celso e depois foram transferidos para a Rua Westphalen, junto à Praça Rui Barbosa.
Na extremidade da Rua Leonardo da Vinci havia a mercearia Chalela (17) (onde eu comprava papel de seda para fazer as bandeirinhas de S. João) e o açougue São Joaquim (18), cujo proprietário se chamava Joaquim. Nós comprávamos pão numa panificadora (19) perto de onde hoje está a estação-tubo e, às vezes, era o padeiro que vinha vender pão bengala numa charrete puxada a cavalo.
Frutas e verduras eram compradas na feira da vila São Paulo (20), onde também havia uma insidiosa barraca de bolachas com aroma irresistível, e uma barraca com dois barris para venda de óleo comestível a granel. Fubá para a polenta dos cachorros vinha de um moinho (21) mais adiante na Av. Salgado Filho, ao lado do barbeiro (22), “seu” Leônidas.
O leite era comprado de uma família que possuía uma vaca, e tinha que ser buscado todo começo de noite. Se chegássemos mais cedo podíamos ver a vaca sendo ordenhada. A Rua Capitão João Ribas de Oliveira não estava totalmente aberta porque era interrompida pelo pasto (23) que pertencia a essa família, cercado com arame farpado, mas com passagens estreitas que os pedestres podiam atravessar em direção aos comércios do “Corte Branco” (24), como se chamava então a região da Av. Salgado Filho próximo ao cruzamento com a Rua José Rietmeyer, onde hoje está a estação-tubo.
Supermercado só havia um, pequeno, e mais as quitandas, padarias, bares e uma bicicletaria.
Abaixo do pasto havia um “mato” (25) com dois laguinhos, onde podíamos brincar no meio das árvores e que, sob a neve de 1975, ficou encantador como num livro de contos de fadas!
Em algum momento em meados dos anos 70 foi aberto um loteamento além desse “mato” que ficava ao lado da nossa casa e as esteiras das máquinas de terraplenagem deixavam suas marcas na argila vermelha e macia. Antes de serem instalados, os postes de concreto para eletrificação do novo loteamento ficavam estendidos ao longo da rua e as crianças brincavam sobre eles.
Nessa região do Guabirotuba o terreno é acidentado e todos os lotes têm aclive ou declive, e as casas de madeira tinham porões sobre pilaretes de tijolo. O custo da estrutura para conter a terra tornava as construções mais caras. Então, no final de 1980, nos mudamos para o Bairro Alto, onde era mais barato construir uma casa de alvenaria.
Gerson Smal Staehler, novembro de 2014
Década de 1974 - Mapa do Guabirotuba com a localização das referências do depoimento de Gerson.
Base cartográfica: IPPUC. Curitiba e Arredores. Planta Preliminar de Arruamento. Escala 1:20.000. 1 prancha. Curitiba, abril de 1976. Arquivo Digital. Acervo: Arquivo Público Municipal/ Instituto de Pesquisa e Planejamento de Curitiba (IPPUC)